sexta-feira, 15 de junho de 2012

15 de Junho

O escritor Euclides da Cunha, que esteve na região acreana em 1905, a serviço do governo brasileiro, comenta em seu livro À margem da História que o Acre era, por volta de 1870, uma vaga expressão geográfica tornando-se, no início do século XX, um lugar de cem mil almas ressuscitadas composta, principalmente, de nordestinos fugidos da seca nas décadas anteriores. Certamente havia algo mais de atrativo na vinda de uma leva imensa desses homens para a Amazônia e para o Acre, que ia além da aridez do sertão.
 
Por que uma região que durante tanto tempo foi “desconhecida” ou “ignorada”, transformou-se, três décadas depois, em uma área de disputa armada e diplomática entre brasileiros e bolivianos? Do final do século XIX ao início do XX, todos comentavam amiúde, nos principais salões diplomáticos e financeiros do mundo, A questão do Acre. Para compreender melhor essa querela é necessário contar algumas histórias sobre o processo de ocupação da região.

A região da Amazônia acreana era rica em seringueiras (Hevea brasiliensis), de onde se extraía o látex, que já tinha suas propriedades elásticas conhecidas pelos indígenas antes mesmo da chegada dos exploradores portugueses e espanhóis à região. Com a descoberta do processo de vulcanização por Charles Goodyear, em 1839, a borracha natural passou a ser fundamental na produção de vários artefatos engendrados pelo processo de industrialização do final do século XIX, principalmente os de aplicação na então nascente indústria automobilística.

Assim, passou a ocorrer uma busca crescente por parte das indústrias européias e americanas pela matéria-prima, abundante na Amazônia, para onde rumaram uma miríade de seres humanos e interesses articulados às demandas do capital internacional. O boom foi tão espetacular que, segundo o historiador amazonense Artur Cézar Ferreira Reis, na obra O seringal e o seringueiro, em 1827 o Brasil exportava apenas 31 toneladas de borracha natural; cinco décadas depois esse número subiu para 16 mil toneladas.

Embora o Tratado de Madri, arbitrado em 1750, tenha procurado regulamentar as possessões hispano-portuguesas nas Américas, o reino espanhol admitia, através do Uti possidetis, a presença portuguesa na Amazônia. No caso da região do futuro Acre, havia a “dança” das linhas limítrofes, mas, tacitamente, a região era reconhecida como pertencente à Bolívia. Esta, em 1825, adquiriu sua independência da possessão espanhola do Alto Peru. Porém, as idas e vindas de outros acordos posteriores fizeram com que os limites continuassem imprecisos e provocassem dubiedades interpretativas. Com a celebração do Tratado de Ayacucho, em 1867, a região do Acre foi reconhecida e ratificada, novamente, como pertencente à nação boliviana. No entanto, a Bolívia tinha enormes dificuldades em se apossar da região acreana, que já era foco de atração para numerosos contingentes de brasileiros, deslocados para esse novo Eldorado com o objetivo de trabalhar na exploração do látex.

Somente em 1899, já com a forte presença de brasileiros em terras do Acre, é que a Bolívia instala um posto de controle fiscal no vilarejo de Puerto Alonso para a cobrança de impostos advindos da produção de borracha. A maior parte dessa produção era enviada, por via fluvial, até as cidades de Manaus e Belém que, por sua vez, repassavam mercadorias e mantimentos para abastecer os vastos seringais.

Decorridos cinco meses da instalação do entreposto fiscal, o delegado boliviano Moisés Santivanez e os demais representantes do Estado boliviano foram expulsos de Puerto Alonso por brasileiros ligados à extração de seringa, atendendo às pretensões dos grandes proprietários de seringais, sequiosos por manter o controle sobre as riquezas locais, liderados pelo advogado José de Carvalho, interlocutor dos interesses do estado do Amazonas, financiador do levante. Um mês depois, o espanhol Luiz Gálvez, também com o apoio do governo amazonense, proclamaria o Estado Independente do Acre, tornando-se presidente da nova nação. Pouco tempo depois, em março de 1900, o governo brasileiro interviria para restabelecer os direitos legais dos bolivianos sobre o Acre.

Companhia arrenda o Acre
Após esse incidente, o ministro plenipotenciário da Bolívia, dom Félix Aramayo, que servia em Londres, viu a necessidade de uma presença mais vigorosa da nação boliviana na região. A saída pensada foi arrendar o Acre para uma empresa de capital privado internacional, inspirado nas chamadas Chartered Company, modelo implantado nas colônias européias existentes na África e na Ásia. Dessa forma, o Acre passaria a ser administrado por uma companhia de capital estrangeiro que estivesse interessada em arrendar o, então, território boliviano, ocupado, principalmente, por brasileiros. O modelo foi pensado pela Bolívia como uma saída para que o país andino não perdesse a região do Acre. A empreitada de Félix Aramayo, inicialmente, não encontrou o sucesso esperado. Somente depois de muitos contatos e articulações na Europa e nos EUA, foi criado, em 14 de julho de 1901, o Bolivian Syndicate (syndicate, em inglês, tem o sentido de cartel e não de sindicato, como no Brasil), um conglomerado anglo-americano com capital de 500 mil libras esterlinas, sediado na cidade de Nova York, que tinha como diretor Martin Conway. Entre os acionistas dessa chartered company encontrava-se até um sobrinho do presidente americano Franklin Roosevelt, e a famosa firma Vanderbilt, como ressalta o historiador Leandro Tocantins na obra Formação Histórica do Acre.
O ponto principal do contrato era o arrendamento, por 30 anos, da região ascreana, pelo qual 60% dos lucros da exploração ficavam com a Bolívia e os 40% restantes com o Bolivian Syndicate. Os lucros futuros viriam, principalmente, da cobrança de impostos sobre a borracha produzida nos seringais acreanos. Além disso, seria assegurada ao cartel a faculdade do uso de força militar para garantir seus direitos na região acreana, e a opção preferencial de compra do território arrendado, se assim desejasse.
As discussões e as bases do acordo foram delineadas meio às escondidas, para não melindrar o Brasil e o Peru, vizinhos fronteiriços, que tinham pendências de limites territoriais com a Bolívia. Mesmo tudo isso ocorrendo nos bastidores diplomáticos, os rumores preocupantes do acordo circulavam junto aos representantes peruanos e brasileiros nos EUA, Europa e Bolívia que, evidentemente, tinham interesse no assunto. Depois de assinado, o contrato foi encaminhado para que o Congresso Nacional Boliviano aprovasse as cláusulas acordadas entre o ministro Félix Aramayo e os acionistas anglo-americanos. No entanto, internamente, havia oposição ao acordo, com muitos parlamentares bolivianos se manifestando contrários ao documento, também conhecido como “Contrato Aramayo”, principalmente, os adversários do ministro Félix Aramayo, prestigiado diplomata e rico industrial.
Foi, então, criada no Congresso boliviano, a Comissão de Fazenda e Indústria com o objetivo de analisar e dar um parecer sobre o arrendamento contratual do Acre ao Bolivian Syndicate. Após as análises, uma das conclusões apontadas pelos membros da comissão foi que era impossível à Bolívia conservar o território do Acre sem o aporte de capitais externos, pois faltava uma presença efetiva do Estado boliviano e, também, uma base demográfica nacional na região onde a ocupação era, basicamente, de brasileiros. Esses fatores eram, ainda, intensificados pelas dificuldades encontradas pelos bolivianos para descer o altiplano até o vale amazônico. Enfim, as dificuldades da Bolívia eram congênitas e enormes diante dos dilemas postos pela questão acreana.

O arrendamento parecia ser a saída menos ruim, como reporta um trecho do relatório da comissão, citado por Leandro Tocantins, ao afirmar que desgraciadamente em la actualidad no se ofrece ninguno otro medio, ni como probabilidad lejana. Após discussões, o relatório foi aprovado no dia 17 de dezembro de 1901, cinco meses depois da assinatura do contrato entre o governo boliviano e o Bolivian Syndicate.
Além das já existentes querelas diplomáticas entre Brasil e Bolívia, a efetivação do acordo trazia a perspectiva clara da “ocupação” do Acre pelos representantes do Bolivian Syndicate, isto é, o prenúncio da exaltação e acirramento entre aqueles que eram conhecidos como “brasileiros do Acre” e os bolivianos. O governo brasileiro, através dos diplomatas Joaquim Nabuco (Roma/Londres), Joaquim F. de Assis Brasil (Washington) e Barão do Rio Branco (Berlim), empreendeu uma campanha para desacreditar o Bolivian Syndicate junto a governos e grupos financeiros que poderiam vir a se associar ao cartel.

Com a nomeação do Barão do Rio Branco para o Ministério das Relações Exteriores, em dezembro de 1902, o ex-embaixador na Alemanha passou a articular de maneira mais incisiva uma solução diplomática para a “Questão acreana” e a ruptura do contrato com a companhia internacional. Após renhidos embates diplomáticos entre as partes envolvidas, o Bolivian Syndicate resolve, em fevereiro de 1903, abdicar do contrato firmado com a Bolívia, ao ser indenizado pelo governo brasileiro em 114 mil libras esterlinas. 

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